FADAS&BRUXAS



Enquanto houver sonho e vontade, hão-de existir fadas e bruxas, dois lados de um mesmo mundo, não necessariamente apertado entre o bem e o mal.


Hão-de haver olhos que conseguem vê-las mesmo na escuridão de um quarto apagado ou no meio dia de um Verão Agostinho, de fazer da trovoada brincadeiras de feitiços de bruxa ou das algas do mar cabelos de fadas que se penteiam.


Hão-de haver olhos puros e olhos fechados, lágrimas de felicidade e também as de saudade.

Aos outros resta-lhes morder a língua.

INTERVALOS


Há intervalos na minha realidade que são espaços que pinto de sonhos. Faço de conta que sendo só meus mais ninguém os sente como eu e mais ninguém tem poder sobre eles. Afinal são o meu sonho. As minhas linhas que posso preencher a nada ou das cores que eu quiser. Inventar pessoas para os tornar ruidosos ou deixar que uma folha seca tombe para quebrar o enredo do sonho. Que sendo sonho, preencho-os tanto quanto a realidade que desejo e nesta mistura rica não sei onde me encontro. Se do sonho a preencher se do olhar que perco na linha do horizonte.

CEGUEIRA


Apercebe-se agora, lentamente, da sua redutora pequenez. Cegueira. Dos anos enrolados em preocupações de rigor, regras, leis e fundamentos sem noção artistica alguma. Da falta de poesia. Das horas paradas num silêncio pastoso em que não disse amo-te. Teve vontade mas não o disse. Da compostura hirta de não se zangar. De dormir a horas certas. De não lembrar dos sonhos nem dos pesadelos. De fechar os olhos ao Sol e fechá-los por ser tempo de Lua. E agora que está só a cegueira ilumina-a com tantos olhos que não tem tempo para guardar tudo.

OUTROS OLHOS


Fotografia de 1963, René Burri

CALAR OS OLHOS

Pára um momento e olha para mim, senta-te, ouve-me, escuta o que tenho para te contar, tanto tempo sem me ouvires, sem me dares um pouco de atenção nas coisas pequenas que me afligem, sabes o que me aflige? tu fugires sempre dos meus olhos, dizeres coisas na passada sem olhares nos meus olhos, lembrares a cor deles e como mudam do verde para o cinza quando me deixas sózinha com a resposta que calo, não vale a pena falar-te se não me ouves com os olhos, por isso não digas que me silencio, diz antes que fecho os olhos.

DETALHES


Passado algum tempo ainda permanecem sons, cheiros, a forma de andar. Depois, o arrastar inexorável das horas muitas leva o grosso e ficam os detalhes, na verdade, o que resta mesmo é o que é importante, são os detalhes. Aquelas memórias que fotografámos com uma intensidade tal e que tantas vezes nem nos apercebermos, é o sumo do que realmente nos impressionou, aproximou ou afastou, o que retivémos para que de uma forma eterna não se nos apague. E desses detalhes com tanto pormenor retém-se a saudade como água parada numa cova depois de chover.

LUZES DO SENTIR

Determinei que hoje não te choro. Virei sim, como de todas as vezes, olhar o mar, deixar-me perder na sua imensidão, ver-me afogar nele e nada fazer para me recuperar das águas que me invadem a fala, o pensar, as memórias e as saudades.


Determinei que hoje não te choro. Virei sim, como de todas as vezes, acenar de lenço branco a naus de outros séculos que apenas conheço do contar e sem esforço, sentirei pimentas e canelas, cacaus e suores na despedida de todos os homens que invento para não me lembrar de ti.


Determinei que hoje não choro. Virei sim, como de todas as vezes, encostar-me ao silêncio e esperar. Virei, prometo. E nos meus olhos haverá farol.

CALEIDOSCÓPIO


Duma fatia fininha de pequenos pedaços de vidro fiz um caleidoscópio rosáceo. Cada vidrilho é um sonho que tem o meu nome. Depois projectei-os num espelho mágico e progredi na arte de inventar. E de cada vez que olho uma nova forma se espevita e encaixa, mais mil sonhos imagino numa profusão de cores juntas que se acasalam e misturam e novas cores e outros sonhos emergem das noites escuras.

MEU

Podem procurar-me segredos, enredos, boatos, mexericos e dissabores, fama, tralha cor-de-rosa, amores escondidos, destinos trágicos, corrosões, erosões, pecadilhos, desvios, trejeitos, defeitos e aleijões, saquem-me TUDO, atirem-me TUDO!

Que uma coisa eu garanto:


AQUILO QUE VEJO É MEU



MULTIPLICIDADES


Sempre vi em mim outros melhor e melhores do que eu.

GRITOS MUDOS


E para qualquer ângulo que se voltasse lá estava o olhar a cristalizar atenções, pobre de tantos séculos a gritar ao cuidado dos que passavam e lhe sorríam mas não queríam saber dos seus tormentos.

INVERSOS



O inverso que se fotografa nos instantes em que se prende o olhar ao olhar de outrém deixa uma impressão a negativo que se revela rápido e por vezes tem a durabilidade de uma vida.

Já me cruzei com olhos por segundos e uma única vez, que ainda hoje recordo com a mesma intensidade e disparo do coração como no momento. São sensações de exclusividade, intimidade e grandeza que aporto para todo o sempre.

Falam os olhos milhões de palavras nesse frémito tão curto e avassalador...

São os inversos, o que não se procura argumento ou defesa do tanto que nos oferecem e do tanto que nos levam.

RASGAR JANELAS EM MIM



Todos os dias rasgo janelas às minhas manhãs. É como abrir o peito, a vontade, o braço empunhando os sentidos. Gosto de as escancarar, avistá-las de longe no dominio da paisagem ardente ao novo sol ou da chuva que veio lavar o mundo. Gosto de as observar nos detalhes, na coisa perdida como se não pertencesse ao enquadramento, achá-la simples por parecer que não faz falta, encontrar-lhe um antes e um depois.

Há sempre um antes das janelas abertas, da voz que se cala, dos olhos que se fecham à maldade, da violência da solidão.

Há sempre um depois das janelas abertas, o som do coração, a boca que pede palavras, o poema do poeta.

Todos os dias rasgo janelas. Só assim me posso querer, só assim posso acreditar.

SAL MQB



Para dentro de mim. Dos sonhos. Do que não consigo. Do que já vi e guardei também. Dos voos intermináveis sobre cordilheiras e escadarias em caracol. De amores que nunca conheci e dos que me arrebataram até os recordar até hoje. Das várias mortes, sustos, pulos, sobressaltos, lutas e vitórias. Tudo já defrontei. Tudo já vi. A cores, milhões de cores. Porque tenho sal nos sonhos.

EXIBIÇÃO



Ainda a vejo... basta-me acercar da janela e olhar para lá. Ainda a vejo a namorar olhares que se pregavam como cruzes pela noite solitária, entre copos de vermute e luzes encomendadas a fingir luas românticas e miadas em vadios animais de gravata e alfinete partindo janelas abertas à espera de ser olhada.

PRENDER



Tocaram-se nas mãos, no abdómen colado, no peito tocado. Ele levou-a ao sabor da música, ela do ritmo do que por ele sentía. Num passo parado deram tempo. Tempo. Olharam-se e seguraram a eternidade.

VONTADE DE TE VER

Pareceu avistá-la no meio de tanta gente, uma quase certeza de que sería ela, sim sem dúvida, o perfil era o dela, por muitos anos que passassem aquele rosto estava impresso na sua memória.


Dedilhou lembranças para aproximar o contorno da boca, o traço do nariz, a fronte como um espelho, os anéis de cabelo que lhe fazíam cócegas no pescoço. Pestanejou, deixara de a ver, ainda agora aqui, tão perto dos olhos, do trazer ao presente... e num instante a realidade madrasta leva para longe o que lhe aqueceu o coração.


Não voltou a encontrá-la no meio da multidão, desaparecera como uma miragem, até talvez o fosse, ou então foi uma vontade de a rever, saber dela, ouvi-la, vê-la perto tão perto que a pudesse tocar com o olhar.

PLANOS



PLONGÉE





CONTRE-PLONGÉE

OLHAR PARA TRÁS





Hum... Não estava certa. Pelo menos com toda a garantia. Mas tinha visto. Tudo. Até guardara os melhores pedaços para se recordar quando estivesse triste ou até muito contente. Não estava certa, já tinha passado tanto tempo, agora até achava algumas cores mais vivas embora o tempo as devesse ter desmaiado, mas não, era ao contrário, e o mesmo se passava com o som das imagens que vira, arrecadara tudo, apanhara tudo com os olhos como se estes fossem uma rede e capturassem presas vivas mantendo-as no cativeiro da lembrança. Olhava para trás, pensava em coisas de há muito tempo que os seus olhos havíam visto.

OUVIR TUDO



OLHOS À ESCUTA...

O QUE VEMOS (NÃO) SOMOS (?)

Tudo o que vemos não é o que somos.


São filmes projectados do que gostaríamos que os outros fossem. São sombras chinesas que ensinam ao olhar que por vezes o mais profundo não é o que se vê, é o que emana do que se projecta ou atira numa parede branca, o que se estica em silhuetas para a frente sob o luar ou a pino às nossas costas derretendo o astro do meio dia.


Tudo o que vemos são pestanejares rápidos e entrecortados de movimentos ao sabor do compasso do coração.


Não há certezas sobre o que vemos. Pois se até do sal do olhar muito mel se recolhe.

NA PONTA DO MEU SONHO



Na ponta do meu sonho existe um campo, verde. Sempre verde. É um tapete verde que nunca muda de cor, que nunca muda de primavera, de pequeninas flores amarelas que parecem bolinhas de ouro. No meu campo de sonho há uma árvore. Também verde, muito verde. Dá me sombra e encosto enquanto olho o meu campo verde. Enquanto adormeço e sonho que na ponta do meu sonho existe um campo, verde. Fecho os olhos, desperta, e lá está ele.